Por que a coragem muda o jogo
A confiança e a ousadia de mudar carreira e trabalho mudam uma pessoa. Mas qual é a importância da coragem para mudar uma empresa? Qual o papel dos líderes corajosos e até onde vai sua influência?
Estamos diante de riscos a todo momento, em todos os lugares por onde passamos. Muitas pessoas têm medo de viajar de avião por causa da possibilidade de acidentes, mas dirigem um carro tranquilamente, ainda que, estatisticamente, os riscos sejam muito maiores – há mais chances de morrer engasgado com a comida do que em um desastre aéreo.
Na vida profissional, estamos diante do risco do fracasso, que pode assombrar um trabalhador todos os dias. Demissão, rejeição e falta de identificação estão na lista de coisas que podem acontecer com qualquer um. Porém, mesmo diante de tantos riscos, vamos ao trabalho todos os dias e enfrentamos situações muito ou pouco perigosas, porque precisamos evoluir (e ficar parado muitas vezes parece ser a pior escolha).
Para isso, precisamos de “força perante o perigo” e de um “sentimento de segurança para enfrentar situações de dificuldade moral”. Essas duas definições estão no dicionário Michaelis quando procuramos por “coragem”.
Nas próximas páginas, falaremos sobre esse importante atributo para as pessoas, de maneira geral, e também para o ambiente profissional. A coragem tem o poder de nos transformar à medida que nos apoiamos nela para enfrentar situações difíceis e é essencial para a evolução das empresas e das pessoas. Mudança de carreira, formação de bons líderes e implementação de uma agenda ESG são só alguns dos temas em que a coragem é necessária.
De onde vem a necessidade
Das mudanças e das incertezas nos negócios. É impossível falar de coragem sem falar de medo, uma reação natural de qualquer animal que precisa sobreviver. Pois mudanças e incertezas geram esse sentimento, daí a coragem ser tão importante: ela nos ajuda a agir e evoluir, enfrentando situações difíceis.
“Na maioria das vezes, o medo é muito racionalizado, o que aumenta sua dose e nos trava”, afirma Cyrille Schneider, CEO da consultoria CBS Partners. “Já a pessoa corajosa assume seus instintos, que vêm do coração, e age. Isso não quer dizer que ela não sente medo. Sente, sim, mas o supera”, diz o executivo.
Schneider também comanda a Startrust, startup que desenvolveu um método para medir o nível de confiança dentro das empresas. É importante essa medição porque, segundo ele, confiança e motivação são os pilares que sustentam a coragem. É a confiança, por exemplo, que faz uma pessoa ser capaz de se aproximar de outra. “Criamos um algoritmo e vários questionários, um para cada tipo de ambiente. Apresentamos situações reais do dia a dia de uma pessoa e pedimos para ela tomar uma decisão. Com base no posicionamento, é calculado o nível de confiança que os comportamentos representam naquele ambiente”, explica Schneider.
São muitos os ganhos envolvidos. A empresa se apoia em alguns números de uma pesquisa do Center for Neuroeconomics Studies, dos Estados Unidos, que mostra os efeitos da confiança no ambiente corporativo: produtividade até 50% maior, 74% menos estresse, 76% mais engajamento e 40% menos chance de burnout.
Como lideranças desenvolvem coragem
Sem confiança, o ambiente não é favorável para ter coragem e tomar decisões audaciosas. Foi por falta de coragem que muitos profissionais competentes acabaram demitidos durante o período mais agudo da pandemia de covid-19, desconfia Cyrille Schneider. “A pandemia exigiu que líderes tomassem decisões impopulares e, na maioria das vezes, sem visibilidade alguma. Era necessário tomar decisões rápidas sem histórico, sem receitas prontas e sem bases estatísticas”, lembra.
As lideranças tinham duas opções dar ouvidos à coragem ou ao medo. Quem tinha confiança no projeto, em si mesmo e no ambiente conseguiu realizar um trabalho corajoso, daqueles capazes de fazer companhias avançarem.
Ser um líder de coragem, porém, não é fácil. O primeiro passo, segundo Ricardo Farah, coach e mestre em psicologia social, é se tornar vulnerável. Pode parecer contraditório, mas ele explica: “Se nossas lideranças não aprenderem com o difícil momento atual a respeitar e ouvir a própria vulnerabilidade – e com isso a vulnerabilidade dos outros – e a não entrar em contato com a autocompaixão, elas não vão desenvolver a competência da escuta acolhedora”, fundamental para o líder corajoso.
Farah, que é mentor de conselheiros e executivos C-level, explica que desenvolver a escuta acolhedora é ser compreensivo com os liderados, ouvir as sugestões, as críticas e até os receios da equipe. Tudo sem a intenção prévia de boicote ou rejeição. Ser um líder corajoso, portanto, passa por se adaptar ao desconhecido que será apresentado pelos colaboradores e “navegar na insegurança, aceitando a própria vulnerabilidade”, explica o coach.
Além do que chama de escuta acolhedora, o especialista cita ainda a necessidade do desenvolvimento da “visão sistêmica humana”. Segundo ele, essa habilidade está ligada a enxergar o ser humano na sua totalidade, “nas dimensões física, mental, emocional e espiritual”.
Atingir esse nível de sensibilidade certamente não é fácil ou normal para os líderes de hoje em dia. Porém, tornar-se vulnerável para acessar a vulnerabilidade dos outros e poder ajudá-los é o que cria um líder corajoso.
Não vamos perder nossa imagem?
É compreensível que pensamentos negativos sejam acionados quando falamos sobre vulnerabilidade nas organizações. Isso porque fomos ensinados a ser cada vez mais fortes, a competir e mostrar que somos capazes o tempo todo. Porém, ainda somos humanos e as vulnerabilidades existem, queiramos ou não.
Para Ricardo Farah, líderes corajosos falam sobre as vulnerabilidades de seus departamentos e empresas com seus liderados, já que é difícil medir o potencial de uma equipe, ideia ou produto sem antes saber quais são os pontos de melhoria. Aqui, conversas corajosas precisam acontecer, em uma sala ou em frente a um espelho, mas temos a tendência de adiar esses confrontos. Medo de se machucar ao enxergar a verdade, de perder uma imagem que demorou a ser construída, da reação do outro e de uma retaliação são alguns dos motivos listados por Farah para que as conversas não aconteçam e, assim, o progresso seja adiado.
“Se não tivermos as conversas corajosas que problemas de trabalho e mal-entendidos exigem, estamos condenados a permanecer no estado de ‘coisas mal resolvidas’, e isso não ajuda a ninguém”, diz Farah.
RH Institucionaliza a coragem
Quem faz a empresa acontecer deve, sim, ser corajoso. Porém, o ideal é criar um ambiente propício a isso, como o trabalho de Schneider sugere. A gestão de pessoas vem sendo cada vez mais valorizada à medida que as organizações se reconectam com o fato de que elas são feitas de pessoas.
Amanda Costa, cofundadora da escola de liderança e inovação Escola do Caos, lembra que questões como digitalização e foco no cliente já estão na pauta das lideranças há tempos, mas o mercado já percebeu que nada disso acontece sem ideias e motivação das pessoas. Esse movimento faz com que as empresas assumam o desafio de dar atenção à essência dos funcionários, desenvolvendo empatia, escuta e tratando vulnerabilidades.
Esse processo precisa ser estruturado e, claro, requer valentia. “É preciso coragem para nos reaproximarmos da nossa essência e valorizarmos o que importa. É uma mistura de autodisciplina, esforço, persistência e vontade. A coragem pode e deve ser incentivada e até ensinada nas estruturas organizacionais”, diz Costa.
A empreendedora defende que as áreas de recursos humanos devem estimular conversas francas e abertas entre colaboradores e suas lideranças. Além disso, ainda é preciso incentivar a inclusão da diversidade nas empresas. “Empoderar cada um dentro de sua singularidade torna as pessoas mais corajosas para expor pontos de vista, confrontar práticas ultrapassadas e propor novas soluções para velhos problemas. Pensar diferente é um ato de coragem”, afirma.
Coragem de enxergar o mundo
Uma empresa precisa de bravura para tornar sua operação ainda melhor, mas isso não basta; ela requer uma dose extra para tornar a sociedade e o meio ambiente melhores, implementando uma estratégia ESG que realmente tenha valor. Para isso, as lideranças precisam ter “coragem para encarar a realidade” e “coragem de admitir que as práticas corporativas estão ultrapassadas, ou são insuficientes, e que não têm impactos positivos sobre o mundo”, acredita Neivia Justa, fundadora da consultoria JustaCausa.
A partir da reflexão sobre os impactos da empresa na sociedade, é hora de agir. Nessa etapa, entra, mais uma vez, a coragem. Aqui, ela serve como combustível para desafiar o status quo e ajudar a empresa a sair do curso planejado, pegando um caminho de impacto positivo para as pessoas e para o planeta.
“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Justa usa esse trecho de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para refletir sobre o que os stakeholders de um negócio querem: “coragem para construir empresas com uma comprovada governança social e ambiental”.
A pressão do futuro do trabalho Incertezas econômicas demandam das empresas coragem para mudar o cenário
Em maio, a cidade suíça Davos voltou a receber o encontro anual do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês) depois de dois anos pandêmicos, com destaque, como de praxe, para o futuro do trabalho. Dois estudos mostram que será preciso uma boa dose de coragem das lideranças e das organizações para lidar com cenários mais sombrios. Um foi o whitepaper da série Jobs of Tomorrow, realizada pelo WEF em parceria com a Accenture. Focado no setor de serviços sociais, que inclui educação e saúde, o estudo mostrou que houve aumento da desigualdade social globalmente, com um déficit projetado de 52 milhões de empregos no setor em 2022. Para reverter o quadro, empresas e governos precisarão fazer investimentos de longo prazo, como garantir educação, saúde e creche para toda a população.
Outro estudo, o Resetting Normal 2021, realizado pela Adecco, trouxe cinco insights sobre o futuro imediato do trabalho baseado nas respostas de 14,8 mil pessoas em 25 países. Validou-se que o trabalho híbrido é uma preferência mundial, mas com variações: pais e os mais jovens preferem mais tempo no presencial. Outra tendência é a semana de trabalho mais curta e flexível. Ponto de atenção para o risco de uma nova pandemia: o burnout; mais de 50% de jovens líderes sofrem do mal.
O quarto ponto é a desconexão entre as pessoas, mesmo que estejam conectadas digitalmente o tempo todo. Desafio para os líderes cultivarem as relações e reinventarem a cultura. Por último, a great resignation é, na verdade, uma grande reavaliação: um alerta de que o próprio significado do trabalho está sendo revisto. Você está pronto ou pronta para enfrentar esses desafios? (Redação HSM Management)
A vontade de mudar e ter uma agenda de impacto positivo pode ser sabotada por dois fatores. O primeiro se relaciona com empresas “tradicionais”, em que a hierarquia funciona como lei, há rigidez nas relações e pouco espaço para mudanças em um ambiente que não gera confiança para os colaboradores. O segundo fator é a mentalidade de curto prazo que deteriora muitas empresas e investimentos. A exigência de haver resultados rápidos pode ser observada no mercado de capitais, com milhares de cursos de day trade oferecidos na internet, ou em reuniões de feedback, por exemplo.
Justa explica que a cultura de curto prazo e a que diz que “aqui as coisas sempre foram feitas dessa forma” não facilitam em nada. “Isso torna difícil e lenta a conscientização e compreensão de pautas, adoção de estratégias e tomada de decisões que assegurarão nossa relevância e existência empresarial no longo prazo”, diz.
A falta de objetivos claros e métricas para acompanhar o andamento dos projetos de impacto positivo também pode atrapalhar que se tenha uma coragem inteligente. Uma pesquisa global da consultoria Accenture com empresas cuja receita anual é maior do que US$ 1 bilhão mostrou a dificuldade de avaliar e gerenciar o desempenho da agenda de sustentabilidade delas. Segundo o relatório, apenas 26% das companhias têm informações confiáveis para monitorar os objetivos de sustentabilidade. Ainda conforme o levantamento, a maioria dos executivos (78%) está buscando entender os riscos ESG em seus negócios, mas apenas 47% definiram métricas e fontes de dados para seus relatórios.
Para Justa, o caminho mais rápido para atingir as metas de sustentabilidade é atrelar os objetivos a tarefas específicas, mensuráveis e atingíveis. Tudo isso deve ser relevante para a bonificação anual das lideranças. Assim, o modelo de remuneração pode contribuir com as visões de curto e longo prazo da companhia.
Coragem para mudar de carreira
A mudança de emprego ou até de carreira podem ser as atitudes que mais demandam coragem na vida profissional. E muitos brasileiros estão precisando dela neste exato momento – a vontade de mudar existe, mostram pesquisas.
Um levantamento do LinkedIn feito em dezembro de 2021 mostrou que 49% dos brasileiros consideravam mudar de emprego este ano. Entre os profissionais jovens, a porcentagem era ainda mais alta: 61%. Os dois principais motivos citados eram a busca por melhores salários e o desejo de mais equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Outra pesquisa, divulgada em maio deste ano pelo instituto ADP Research, apontou que quatro em cada cinco brasileiros consideram mudar de carreira. Aqui, a vontade de empreender foi o fator mais citado para explicar o desejo.
“Mudar de carreira, nesse contexto, possui relação direta com a busca por melhor qualidade de vida. Não é somente ganhar mais, mas chegar ao final do dia com o sentimento de satisfação pelas realizações obtidas”, disse, em comunicado, Mariane Guerra, vice-presidente de RH para a América Latina da ADP.
Tanto desejo de mudança pode ser explicado pelas transformações cada vez mais rápidas e profundas por que o mundo vem passando. “Há um turbilhão de coisas acontecendo que esquenta as coisas e faz com que as transições de carreira aconteçam cada vez mais”, diz Luciano Santos, mentor e autor do livro Seja Egoísta com sua Carreira.
No processo de transição de emprego ou carreira, erros podem ocorrer. Muitos empreendedores compartilham suas histórias de fracasso, mas elas em geral serviram como incentivo para o sucesso.
Há outras formas, no entanto, de aumentar suas chances de sucesso sem ser com um histórico de fracassos. Uma das coisas a fazer antes de mudar é criar uma lista de desejos para o trabalho. Ter flexibilidade, salário maior e aprender mais são exemplos de itens que podem ser adicionados à lista. “As pessoas refletem muito pouco sobre o que querem de um trabalho. Isso faz com que a mudança seja muito mais difícil e até errada”, diz Santos. Também é importante ser honesto consigo mesmo sobre o que pode encontrar em outro emprego ou carreira. Ignorar riscos e pontos negativos é um desserviço e pode trazer muita frustração no futuro.
Um dos exercícios que Santos propõe para quem considera mudar de emprego é criar prateleiras de empresas, com listas de “empresas dos sonhos” e outras “secundárias”. Tentar se conectar com pessoas que trabalham nelas e procurar mais informações pode ser útil – para saber mais e para encontrar oportunidades. E como definir o momento certo da mudança? É fácil: pergunte-se se as coisas estão funcionando no emprego atual e se há satisfação no trabalho. “Quando a resposta é ‘não’, já passou da hora de procurar outro lugar’’, diz ele.
Muitas vezes dá para iniciar e até finalizar uma transição de carreira dentro da empresa. A mudança interna exige coragem do colaborador, é claro, porque ele precisa verbalizar o desejo de migrar. E exigem coragem da instituição para incentivar que os funcionários busquem seu bem-estar – o que pode aumentar a retenção de talentos, tendo em vista que desligamentos e contratações podem ser processos caros, mas como isso munca é garantido, a coragem se faz necessária. “Fiquei 11 anos no Google e tive entre oito e dez funções diferentes. O melhor para a empresa é incentivar a mudança interna”, conta Santos.
Autor: Leonardo Guimarães
Publicado Originalmente em: https://www.revistahsm.com.br/post/por-que-a-coragem-muda-o-jogo
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